lPor Bianca Andrade

Foto: Reprodução/ Íris Zanetti/ Divulgação
O cantor Gilberto Gil pode enfrentar um grande processo na Justiça da Bahia envolvendo um dos últimos projetos do veterano levado para os palcos, a ópera-canção 'Amor Azul'.
Representantes do espólio do músico, compositor e designer tropicalista Rogério Duarte, apresentaram uma petição contra Gil, Flora Gil, André Vallias, Aldo Brizzi e as empresas Gegê Produções Artísticas Ltda, e Refazenda Produções Ltda, em busca do reconhecimento dos direitos autorais de Duarte sobre a obra "Gita Govinda, a cantiga do negro amor", além de uma indenização por danos morais e materiais, e o depósito das gravações audiovisuais e partituras das óperas para análise.
A ação, que se encontra em fase inicial, com a apresentação da petição inicial pelo espólio de Rogério Duarte, foi distribuida em dezembro de 2024. Todas as alegações e evidências apresentadas deverão ser analisadas pelo juízo para se chegar a uma decisão sobre o caso.

Em documentos obtidos pelo Bahia Notícias, a ação judicial movida pelo espólio de Rogério Duarte, representado pelo filho do artista, o inventariante Diogo Duarte Guimarães, alega que os réus se apropriaram indevidamente da obra de Rogério Duarte para criar e explorar comercialmente as óperas "Negro Amor" e "Amor Azul", sem a devida autorização e crédito.
Em uma petição com mais de 160 páginas, os autos detalham a trajetória de Rogério Duarte e o papel do músico e designer na Tropicália, e a história de quando ele fez a tradução de "Gita Govinda", publicada no ano de 2011 de "forma individual e solitária".
De acordo com a defesa do espólio do tropicalista, feita pela Dra. Alexandra Matos, a tradução da obra "Gita Govinda, a cantiga do negro amor", feita por Duarte por volta de 2006, foi fundamental para o projeto da ópera. Os representantes do artista afirmam que ele não foi apenas o tradutor da obra sânscrita, mas também o mentor e idealizador do projeto de transformá-la em uma ópera. Isso por que, no próprio documento, há indícios desejo de transformar a tradução em um produto para mídias musicais, que seria feito em parceria com o Luiz Caldas e Adriana Calcanhoto, no entanto, a ideia acabou sendo concretizada com Gil.
"Com base na ideia de construir o projeto de Gita Govinda, Rogério Duarte, em estágio de câncer de garganta, além de já idoso, o que só aumentava o seu estado de vulnerabilidade, a essa época, após ter rompido com a Azouque, reunia-se com Flora Gil, Luiz Carlos Maciel, Aldo Brizzi, Luiz Caldas, dentre outros importantes nomes da cultura erudita do Brasil, com reverberações na Música Popular Brasileira (MPB), bem assim em demais manifestações artísticas do mesmo jaez, sob a coordenação de um dos seus filhos, Diogo Duarte Guimarães, com a perspectiva de publicar a sua tradução por meio de um livro por intermédio da Gegê Produções, via patrocínio do MINC. O grupo também tinha como foco central promover a derivação da obra de Rogério para outras mídias artísticas, como projeto de CD duplo, ópera, site e outros."
Na petição a que o Bahia Notícias teve acesso é retratada a relação entre Rogério e Gil, que teve início na Tropicália e voltou a ser visitada com a ideia do projeto de Duarte. De acordo com o documento, Diogo Duarte, filho do tropicalista, buscou apoio da Gegê Produções, empresa de Flora Gil, esposa de Gilberto Gil, para a publicação da tradução de "Gita Govinda" e para a derivação da obra para outras mídias, incluindo uma ópera.

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Duarte e o pai teriam procurado a Gegê Produções para esse processo, em parte, pela relação amistosa preexistente entre Rogério Duarte e Gilberto Gil, que eram compadres e amigos, e por achar que a influência do ex-ministro da Cultura pudesse ajudar no processo. No entanto, os dois passaram a se afastar durante o desenrolar dos eventos relacionados à publicação da obra.
"A relação dos antigos amigos tropicalistas terminou arruinada, tendo o Rogério nutrido um profundo distanciamento da pessoa de Gil, tornando-se este um amigo desconhecido, regado a alguma mágoa, angústia e sentimento de ingratidão profundo."
Na peça, a defesa do espólio de Duarte apresenta ainda evidências, como e-mails e documentos trocados entre Rogério Duarte, Aldo Brizzi e outros envolvidos no projeto desde 2010, que supostamente comprovam a idealização e coautoria do projeto original por Rogério Duarte e a subsequente apropriação pelos réus.
"Depois da morte de Rogério Duarte, a família dele procura Gilberto Gil e Flora Gil, após verificar a explosão da ópera Negro Amor, em diversos meios midiáticos, pensada pelo de cujus, em consonância com demais pessoas, a partir do recurso de derivação com a obra de 'Gita Govinda, a cantiga do negro amor', sem que os direitos autorais dos Duartes tivessem sido respeitados. Nesse momento, Gilberto Gil que, sequer integrou a equipe para elaboração da ópera, começa a figurar como escritor dela ao lado de Aldo Brizzi, em publicações nacionais e internacionais. Gil apenas recebeu e-mail, em 2010, com a íntegra do livro 'Gita Govinda, a cantiga do negro amor', obra-prima de Rogério Duarte, antes mesmo de ela ser publicada em 2011, conforme demonstração comprobatória a ser feita posteriormente ainda nesta peça preambular, ALÉM DE TER HAVIDO A EXPECTATIVA DE QUE ELE FOSSE UM DOS APRESENTADORES DA ÓPERA, QUANDO DE SUA EXECUÇÃO, COMO ELE O FAZ AGORA, E MAIS NADA. Frise-se: mais nada foi feito por Gilberto Gil, à época dos fatos, a não ser dialogar com os Duartes, por meio da Gegê Produções, empresa de sua esposa, Flora Gil, da qual ele também é sócio, e também por meio de André Vallias, um de seus colaboradores na Refazenda, com fins de prometer o que nunca cumpriram, patrocínio da publicação da tradução de Gita Govinda por Duarte, via obtenção de recurso pelo MINC. Este (Duarte) esperou por anos, até que decidiu arcar com o ônus da publicação sozinho, em 2011."
Segundo Diego Duarte, a mudança do nome da ópera para "Amor Azul" após as reivindicações da família em 2018 foi uma tentativa de ocultar a apropriação indevida da obra original. A família ainda alega que Gilberto Gil sequer integrou a equipe para a elaboração inicial da ópera.
"Nos idos de 2017, um ano após a morte de Rogério Duarte, Gil desponta como um dos autores da ópera de Gita Govinda, a cantiga do negro amor, mencionando o nome de Rogério como um inspirador, aquele que sonhou com essa derivação artística, sem que lhe fosse atribuído seus créditos autorais em toda a proposta. Ao receber as reivindicações da família pelas violações dos direitos autorais de Rogério Duarte, em 2018, os réus preferem mudar a obra de nome, 'Amor Azul', apropriando-se indevidamente do que nunca lhes pertenceram, mantendo toda a sua estrutura ideológica, inclusive com a presença de nomes que chegaram a pensar a criação artística com os Duartes, como André Vallias, Arnaldo Antunes, Aldo Brizzi, dentre outros, a ter de reconhecer a necessidade de passar os valores devidos à família, dando o crédito e o reconhecimento autoral do genial Rogério Duarte, como disseca o quinto tópico desta peça preambular."
Mesmo com toda questão judicial, a obra conseguiu ir para o teatro, com sessões no auditório da Radio France, em Paris, com a Orquestra e o Coro da instituição, em dezembro de 2023, e em São Paulo com a participação da Orquestra Jovem do Estado de São Paulo - Ojesp e do Coro Acadêmico da Osesp, na Sala São Paulo em agosto de 2024.
A obra foi apresentada ao público em dois atos, com um intervalo de 20 minutos entre eles. Na descrição do espetáculo, a equipe afirma que o público acompanha a relação das divindades em diferentes cenários, desde a Índia mítica do passado e o Brasil vívido da contemporaneidade. "Gil está no palco no papel de Jayadeva, o contador da história e de Vishnu, um dos deuses supremos do hinduísmo. As composições exclusivas que tecem a narrativa unem orquestra sinfônica, balé indiano, vozes populares e coro lírico a gêneros musicais como samba, bossa nova e afoxé, além de incorporar a percussão afro-brasileira e o veena, um tradicional instrumento de cordas indiano".

Salvador recebeu o espetáculo pela primeira vez no dia 23 de novembro de 2024 na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, ao lado da Orquestra e Coro da Neojiba e solistas do Núcleo de Ópera da Bahia. No texto de divulgação do evento, ainda disponível no site Sympla e enviado pela assessoria, é informado que a ópera foi escrita durante sete anos por Gil e Brizzi.
“É um poema de mais de mil anos atrás que trata de vários deuses indianos e tramas afetivas e amorosas, entre eles, o amor de Krishna e Radha, dois grandes personagens místicos e míticos da tradição hindu. O plano é ter a ópera completamente encenada em breve”, afirma Gil sobre o projeto desenvolvido com o maestro italiano.
No material de divulgação do espetáculo enviado pela assessoria de imprensa, Brizzi cita o designer tropicalista, Rogério Duarte, como a pessoa quem apresentou o poema a Gil, enquanto o baiano afirma que foi parceiro de Duarte por anos. O tropicalista, no entanto, não é citado na ficha técnica do espetáculo. “Rogério, Aldo e eu fomos colaboradores durante muitos anos, e Rogério também um adepto da cultura indiana e Hare Krishna”.