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Autodestruição, traição e Endemia Silenciosa: Conheça as principais histórias dos Jogadores Anônimos de Salvador



Por Victor Hernandes
Foto: Bruno Peres / Agência Brasil


“Tem os que se desesperam e tentam tirar a própria vida...”. É com essa frase, um tanto forte e chocante, que um dos membros dos Jogadores Anônimos Salvador começou a contar os depoimentos e histórias mais marcantes acerca de integrantes do programa, que enfrentam transtornos relacionados ao vício de jogos e apostas.







Um livro não seria suficiente para resumir todos esses atos. Traições, impactos financeiros, tentativas de suicídio e falsos roubos são algumas das narrativas que dão o tom das histórias dignas de produções cinematográficas. E os protagonistas são as pessoas que enfrentam uma compulsividade por apostas e jogos.



Ainda fazem parte do drama, que acontece no cotidiano de muitos brasileiros, outros personagens que são acometidos de forma indireta, ou até direta, por sofrerem pelos danos causados por jogadores compulsivos.



Dados do Ministério da Saúde apontaram que desde 2023 a rede pública de saúde obteve um crescimento na quantidade de pacientes que buscam este tipo de ajuda. Os registros de atendimentos de pessoas com sintomas de jogo patológico foi de 841 em 2022 para 1.290 em 2023, um aumento de 53%. Já até julho deste ano foram notificados 2.406 casos.



O BN fez contato com as Secretarias de Saúdes baiana e da capital baiana para trazer o recorte local de números de registros e atendimentos da questão, mas as pastas informaram que não têm a contabilização. Neste cenário, a reportagem do Bahia Notícias foi ouvir e conhecer algumas dessas histórias que marcam a trajetória de pessoas com esta patologia.



A apuração está inserida na série de matérias "Endemia Social: O impacto do vício em apostas na vida dos Jogadores Anônimos de Salvador", que tem o intuito de alertar sobre a compulsividade em relação a jogos de azar, cassinos onlines, entre outros do tipo; mostrar como é possível encontrar auxílio; e entender como o ato influência no cotidiano dos adeptos.



O conteúdo a seguir pode despertar gatilhos em pessoas que passam por este tipo de problema. Em caso de gatilho é necessário procurar uma ajuda de um profissional de saúde mental.



Uma primeira história é contada pelo o jogador anônimo Walter (nome fictício). O relato aconteceu com ele antes de sua fase de abstinência dos jogos - e antes dele procurar o JA para buscar auxílio. Era no período de final de ano, quando ele enfrentava o transtorno e recebeu seu salário de trabalho junto com o pagamento do benefício do 13º.



O que era para ser destinado a pagamentos e investimentos virou verba para suas apostas e jogos. Após perder seu salário, ele efetuou um empréstimo, mas em sequência também gastou. Frustrado em decorrência dos sentimentos causados pela dependência, Walter tentou tirar a própria vida.



“O meu relato pessoal talvez seja um dos mais impactantes. Porque se não fosse o meu [depoimento], talvez eu não estivesse aqui. Em um dia eu tinha recebido meu salário todo. E às duas horas da tarde, eu tinha perdido tudo. Fui no banco, peguei mais dinheiro financiado, fiz empréstimo e gastei tudo. Quando chegou às 20 horas eu estava de frente para a janela desesperado. Só que eu tinha medo de altura e aí eu tive a oportunidade de pensar um pouquinho e reformar minha vida. Três dias depois eu entrei na sala dos Jogadores Anônimos“, contou.



Uma situação vivida por um outro integrante do programa, que foi compartilhada durante a entrevista ao BN, trata de uma traição de um marido com sua esposa. Traição não física, mas sim de uma quebra de confiança. O homem, que não teve a identidade revelada, gastou toda poupança que juntou com sua esposa durante alguns anos de casamento e de muito trabalho, e só revelou a despesa com os jogos durante a reunião do JA.



“Uma senhora trouxe o marido para a reunião e começou a perguntar: ‘Aquela poupança que nós juntamos durante tantos anos? E o marido respondeu: ‘ Você pensa que tem? Eu torrei tudo’. O casamento acabou ali, não importa o valor que ela estava se referindo, mas sim a traição. Não era uma traição sexual, ele fez isso sem ela saber. E isso é a coisa mais comum que acontece, é sobre roubar”, alertou.



ETAPAS COMUNS NOS DEPOIMENTOS

Três etapas marcam as trajetórias daqueles que enfrentam a compulsão por jogos: Insanidade, prisão e morte. Os 3 momentos podem não ser nessa respectiva ordem, mas o que se sabe é que são encontrados constantemente relatos de jogadores que perderam o controle de si, se envolveram em algum caso de criminalidade para conseguir dinheiro para apostar e morreram em decorrência da tentativa de praticar suicidio ou por dever dinheiro.



“A pessoa pode ser interditada pelos atos, ou seja, insanidade. Você está insano e está fazendo aquilo constantemente sem perceber, ali sem pensar. A prisão é quando seu dinheiro é insuficiente e você começa a roubar, a tomar emprestado e não pagar, ou por cometer outro ato ilícito. A morte pode acontecer através de autodestruição ou alguém cometer este ato por ele, em decorrência de dever dinheiro às vezes a agiota. Então tudo isso acontece”, disse o JA.



De acordo com ele, cerca de 90% dos membros do projeto já pensou em cometer suicidio.



“Em nossa literatura de acolhimento, ao recém-chegado a ultima pergunta que a gente faz é: ‘Você já pensou em cometer um ato de suicídio, de auto-destruição?’ E 90% diz que sim, quase todos pensaram, é o desespero”, indicou.



O servo do programa listou ainda alguns dos depoimentos mais fortes que já foram citados durante as reuniões.



“Tem gente que diz: ‘Eu não tenho mais solução em minha vida, vou dar um tiro em minha cabeça’. São situações super delicadas, o que você vai dizer para o cara? São casos que a gente enfrenta às vezes. Mas temos que atender essas pessoas e encaminhá-las para profissionais de saúde, a exemplo de psiquiatras e psicólogos”, observou.



DESTRUIÇÃO PESSOAL E FAMILIAR

O impacto financeiro é também um outro drama real nas narrativas desses personagens. Além disso, a destrução familiar também causa um choque durante a explanação desses depoimentos.



“Na realidade, o primeiro impacto é financeiro. As pessoas chegam porque estão endividadas. Então esses são os primeiros relatos, só que quando a pessoa observa, ela destruiu outras coisas também, ou seja, a família. Às vezes ele perdeu o emprego por causa do jogo”, constatou.



Tem ainda viciados que mentem ao dizer que perderam o dinheiro após serem roubados, mas na verdade gastaram suas verbas.



“Tem gente que recebia salário no dia e chegava em casa sem nada. Ao ser questionado a pessoa dizia que foi assaltada e roubada, mas na verdade era mentira. Os relatos são muito complexos, alguns menores e outros maiores. Porém, todos envolvem drama pela obsessão pela aposta. O vício da aposta do dinheiro tem reflexo em toda a estrutura familiar, de trabalho, de tudo. Destrói tudo”, revelou.



Apesar de toda trama em alguns desses enredos, o final feliz de muitos filmes também acontece na vida real. Há relatos daqueles que superaram o vício de apostas.







“É muito difícil você ter um tratamento, mas não é impossível. Tanto é possível que eu estou há 18 anos sem fazer nenhuma aposta, porque nós conseguimos entender a mensagem e conseguimos aceitar minha condição de doente. A primeira vez que me disseram que era um doente, eu rejeitei. Não me achava doente. Então é preciso aceitar essa condição. [...] Entendi também que isso [o vício] não serve para nós, para minha vida. Eu já estava separado da minha mulher por conta do jogo”, completou o membro do grupo.

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